top of page
Foto do escritorOs Antípodas

Fechando o Ciclo

Atualizado: 15 de abr. de 2020


Adubar a terra, plantar as sementes, cultivar as plantas, realizar a colheita, comer, urinar, defecar, apertar o botão mágico da descarga e se livrar dos excrementos.

Você sabe o que acontece com seu xixi e cocô depois que você aperta o mágico botão da descarga no vaso sanitário?

Figura 1: o popular WC (water closet, que significa “gabinete de água”).

Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008 (PNSB) do IBGE, publicada em 2010, há coleta de esgoto em 44% dos domicílios brasileiros (no Distrito Federal, 86,3% dos habitantes contam com esse serviço, contra apenas 1,7% no Pará); desses, 68,8% recebem algum tipo de tratamento antes de serem despejados no ambiente. Em outras palavras, 30% de todo o esgoto produzido no Brasil recebe algum tipo de tratamento, o restante é lançado direta ou indiretamente no mar ou em rios, para azar dos municípios que captam essa mesma água alguns quilômetros adiante.

Você sabe para onde vão os excrementos que você produz? Já tinha parado para pensar que a água que chega à sua casa provavelmente veio de um rio que recebeu o cocô dos habitantes da cidade vizinha antes de chegar até sua torneira?

Figura 2: sistema convencional de saneamento, onde cada cidade coleta e trata a água do rio para consumo, e depois a despeja no próprio rio. Pior para a próxima cidade. Fonte: modificado de Federal Ministry for Economic Cooperation and Development, Alemanha.

A abordagem convencional do saneamento (e a nossa cultura) prega o distanciamento entre nós e nossos excrementos. E para levar os dejetos bem longe de nós, depois de apertarmos o botão mágico da descarga, geralmente se usa água, muita água, limpa e purificada em grandes Estações de Tratamento de Água (ETAs).

Com sorte, estaremos entre os 30% de brasileiros premiados, e nosso cocô e xixi diários receberão algum tipo de tratamento em Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) antes de serem lançados em algum rio. Mas isso não quer dizer que não há impactos no meio ambiente, pois as ETEs nem sempre funcionam da maneira como deveriam; além disso, elas também geram resíduos, chamados lodos, que muitas vezes contém metais pesados e são destinados a aterros sanitários, ou a lixões, contaminando o solo e a água (sim, é absurdo, mas corre-se o risco de tratar-se o esgoto para depois poluir a água em outro ponto, já que apenas 27,7% dos municípios brasileiros possuem aterros sanitários, e somente 25,3% de todo o “lixo” produzido no país é destinado a eles, segundo a PNSB 2008).

Nesse sistema convencional de saneamento, portanto, é difícil saber o que ocorre com nossos dejetos. Mas por que saber pra onde eles vão? Primeiro porque é nossa responsabilidade (ou deveria ser) cuidarmos de nossos resíduos, e segundo porque eles são preciosos, veja a seguir por quê.

Há três elementos que são absorvidos pelas plantas em grande quantidade para o seu crescimento: nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K), chamados macronutrientes, e conhecidos como NPK. São esses três elementos que estão presentes nos adubos químicos e fertilizantes industriais aplicados pelos agricultores em suas lavouras. “Coincidentemente”, esses são os principais elementos encontrados na urina e nas fezes, além do elemento carbono. “Coincidentemente” está com aspas porque na verdade não há nenhuma coincidência aí. Se estudarmos e observarmos a natureza, veremos que ela funciona em ciclos, como o ciclo da água, do carbono e do nitrogênio, de forma que os elementos e nutrientes estão sempre sendo reciclados como observou o químico francês Antoine Lavoisier em sua célebre frase “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. A devolução de nosso xixi e cocô de cada dia à terra é uma maneira de levar o NPK e carbono a ela, para que novas plantas possam se desenvolver; pois na natureza o que é resíduo para um, é alimento para outros.

Porém, esse pensamento é rapidamente rechaçado, pois nossa cultura nos diz que temos que nos afastar o máximo possível da urina e das fezes. Vietnã, Japão, China e outros países orientais cultivaram os mesmos terrenos por quatro mil anos, sem o uso de fertilizantes químicos e abastecendo populações de milhões de pessoas, como isso foi possível? Tradicionalmente eles aplicam o chamado “night soil” às suas terras antes de plantarem, que nada mais é que cocô fresco. Nós, civilização ocidental, em contrapartida, somos capazes de destruir a fertilidade de um solo em 50 anos, utilizando fertilizantes químicos e extraindo todos possíveis recursos dele... Aliás esse é um de nossos problemas: somos educados para Explorar recursos e não para Criar recursos. Vendo deste ângulo, podemos nos comparar a parasitas; nos comportamos como parasitas do planeta Terra.

“Não podemos resolver um problema com o mesmo tipo de pensamento que o criou” - Albert Einstein.

E a crise de abastecimento de água em São Paulo? O reservatório Cantareira vem mensalmente batendo recordes históricos de nível de água; o último recorde que vi foi o de menos de 12% de sua capacidade total. A “lógica” cartesiana que nos move nos leva a buscar (explorar) outras fontes de água para abastecer a cidade, mesmo que elas estejam em outros estados, a centenas ou milhares de quilômetros.

É necessária uma nova forma de fazer as coisas, e o saneamento ecológico é uma alternativa viável para isso, pois utiliza somente uma fração da água utilizada no sistema convencional, dispensa a construção de custosas redes de encanamentos, e trata os dejetos o mais próximo possível de seu local de geração, com segurança sanitária, seguindo padrões internacionais da Organização Mundial de Saúde, e sem odores desagradáveis, possibilitando o uso das fezes compostadas e da urina em cultivos de alimentos (fique tranquilo, que não será necessário aplicar cocô fresco em suas alfaces... além de malcheiroso isso representaria um risco à saúde). O produto da compostagem é uma terra preta, um húmus rico em nutrientes.

Cocomposto

Figura 3: terra preta, ou húmus, oriunda de compostagem lenta de fezes .

Aplicar o saneamento ecológico é fechar o ciclo: adubar a terra, plantar as sementes, cultivar as plantas, realizar a colheita, comer, urinar, defecar, compostar, adubar a terra, plantar as sementes, cultivar as plantas, realizar a colheita...

Fechando o ciclo de nutrientes.

Figura 4: o ciclo de nutrientes. Fonte: The Humanure Handbook, Joseph Jenkins, 2005.

Bibliografia:

  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008. Rio de Janeiro, 2010.

  • Jenkins, Joseph - The Humanure Handbook (O Manual do Esterco Humano), 3a edição, 2005.

96 visualizações0 comentário
bottom of page